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15 Textos comemorativos aos 15 anos da Palhaça Barrica


Texto 01 - TEATRO NA INFÂNCIA

        Quando criança eu morava numa comunidade do interior do município de São Sepé, interior do Rio Grande do Sul. Morei lá desde os meus dois anos até os onze. Primeiro morávamos na velha casa da minha avó paterna, que não deu tempo de eu conhecer, só lhe conheci através da casa. Depois mudamos para a casa da aroeira em V e depois para a beira da sanga.
        Eu era filha única, não tinha muitos amigos, por esse motivo imaginava muitos personagens, vivia muitas histórias, falava sozinha. Tive sempre uma imaginação muito fértil. Nossa casa, sempre muito simples, não tinha luz, não tinha água encanada, não tinha chuveiro, não tinha televisão, mas tinha sempre uma vela que ficava no meio da casa de 4 cômodos e iluminava tudo, tinha água fresca da cacimba, tinha banho de bacia e tinha muita ideia pra eu pensar.
       Brincava sempre com minhas bonecas, criava muitas histórias, brincava de apresentar programas de televisão e de fazer novelas. Segundo minha mãe, quando eu tinha 4 anos, a vizinha me perguntou o que eu queria ser quando crescesse, e eu respondi: - Atriz!
       Meu pai era agricultor, mas também pedreiro e carpinteiro, minha mãe era professora, mas também doméstica, doceira, fazedeira de chás, de bolos, de doces deliciosos e bolachas. Quando era professora, minha mãe ia quase todos os meses para a cidade, para pegar materiais na prefeitura e para levar nossas provas e trabalhos. Nessas ocasiões, eu sempre ia com ela. Depois de vomitar horrores no ônibus, eu chegava finalmente na casa da minha avó. Sempre comidas diferentes que meu padrinho trazia do mercado, muitas brincadeiras com meu primo e meu padrinho que se “fantasmiava” debaixo de um lençol e corria a gente pela casa, e a televisão.
         Eu sempre fui muito encantada pela televisão. Assistia a Xuxa, desenhos e as novelas. De cara eu já sabia quem era o mocinho, o bandido, a mocinha e sabia quando eles iam se apaixonar um pelo outro. Eu tinha facilidade de ler as entrelinhas das novelas. Até hoje, se eu ver um capítulo, eu já sei toda a novela passada. Habilidades inúteis que a gente vai adquirindo na vida.
         Mas o interessante disso tudo, é que quando eu chegava em casa, eu me imaginava aqueles mesmos personagens e saia a vive-los pelos campos, pelas estradas, falava comigo mesma, que na verdade não era eu mesma, eram minhas invenções.
        A mãe me mandava buscar gravetos e vassouras no campo e eu ia correndo, cantando e vivendo meus personagens. Só que eu nem sabia.
       Um dia, as mulheres da nossa comunidade resolveram montar uma peça de teatro, como se fosse Teatro de Revista, onde falavam dos moradores das comunidades, cantavam, dançavam, encenavam, umas vestidas de mulheres, outras vestidas de homem. E eu, absolutamente encantada, com 5 ou 6 anos de idade, me lembro até hoje de imagens daquela apresentação. Lembro que as pessoas riam muito da peça, se identificavam e falavam sobre o assunto durante dias, e sempre que lembravam e falavam, riam.
        Eu fiquei muito impressionada. Na mesma época, minha vizinha havia comprado uma televisão a bateria de trator e eu gostava muito de assistir a Escolinha do Professor Raimundo, isso ainda na década de 80. Eu e ela, quase minha avó, tínhamos uma espécie de combinado. O seu marido, um senhorzinho de idade, quase meu avó, nunca queria almoçar, então eu levava o almoço e começava a conversar com ele sobre as suas histórias do passado, eu ficava perguntando sobre a guerra, sobre a colheita do arroz, sobre as ovelhas e ele distraído ia comendo tudo. Então, eu podia assistir a Escolinha.
        Eu que andava tão apaixonada por essa ideia de ser personagens, chegava na escola e praticamente obrigava meus colegas a fazer as peças comigo. Nós pegávamos umas roupas velhas, umas barbas cinzas que dão nos galhos das árvores para fazermos perucas, barbas e bigodes, colocávamos numa sacola na beira da estrada, e no dia seguinte quando íamos a pé para a escola, íamos juntando e levando.
        Na hora do recreio, fazíamos a escolinha do professor e cada um de nós fazia um personagem cômico diferente.
        Eu não sei os meus amigos, mas eu muito me divertia. E hoje penso, que como era uma grande brincadeira eles entravam nessa história comigo. As vezes não queriam brincar disso, então a gente ia jogar bola, subir nas árvores do pomar da escola, brincar de pega-pega, essas coisas de criança.
        Quando eu paro para pensar na minha infância, e nas poucas experiências culturais e artísticas que tive, eu não posso deixar de pensar que as vezes a quantidade de referências não é tão importante quanto a qualidade e o impacto que elas têm sobre nós. Eu sempre tendi para o cômico, sempre tendi para o popular, para o que fizesse as pessoas rirem, para o que alegrasse as pessoas, que fizesse elas pensarem sim, mas de uma forma cômica. Aqui estou, completando 15 anos como palhaça, seguindo o caminho ao que vim nessa vida, totalmente influenciada e tocada pelas experiências artísticas que tive na minha infância.


TEXTO 02 - A ESCOLHA DA VOCAÇÃO

Depois de passar por várias experiências com teatro amador nas escolas de ensino fundamental e médio, fiquei muito inclinada a fazer vestibular para Artes Cênicas, na Universidade Federal de Santa Maria, RS.
Quando eu comunicava essa minha decisão aos meus amigos e familiares, como em quase toda casa, quando um potencial artista se manifesta, a família nos vem com as frases chavões: - Mas vai viver de quê? Mas isso dá dinheiro?
Eu não sabia responder nenhuma destas perguntas, eu verdadeiramente nunca tinha conhecido alguém que tinha feito esse curso e que vivesse disso, não tinha a mínima ideia do que eu realmente ia fazer num curso de Artes Cênicas, mesmo assim, decidi e fiz o vestibular. Mas não passei na primeira chamada. Fiquei muito triste, claro. Chorei como se o mundo tivesse acabado, como se não soubesse mais o que poderia fazer dali para a frente. Não conseguia vislumbrar nada além daquele curso. Lembro-me que minha vó estava na minha casa nesse dia, e ela me disse: - Mas você não tem outra prova para fazer ainda? Foi então que me dei conta, eu não havia passado no PEIES que era um programa de entrada na universidade, diferente do vestibular. Eu ainda tinha a possibilidade de fazer o vestibular, só que agora para pedagogia.
E como boa geminiana, mudei o foco rapidamente, comecei a estudar para o vestibular e passei para pedagogia. Mas minha comemoração não foi intensa, minha alegria era pela metade. Eu ainda tinha esperanças de ser aprovada na 2ª chamada. Na frente do rádio, fiquei escutando nome por nome e não falaram o meu. Então comecei a me convencer de que era isso mesmo que eu devia fazer, pedagogia.
Mas como o que é para ser, é. Como o que é pra gente, não é pra outro. Na manhã do dia em que sairia a 3ª chamada do PEIES, eu lembro bem, estava lavando roupas no tanque fora de casa. Minha mãe me disse: - Você não vai escutar a lista do PEIES? Quem sabe algum amigo teu passe. Minha mãe sempre vibrava quando meus amigos eram aprovados, como se tivesse sido um filho dela. Mas eu, “desesperançosa”, respondi: - Não quero saber. Mas sabe, mãe tem destas coisas, elas sabem das coisas mesmo que não saibam. É como que uma magia só delas. O rádio continuou ligado. De repente: - Artes Cênicas Bacharelado: Michelle Silveira da Silva. O que? O meu nome na listagem? E então a alegria foi completa, eu estava indo rumo ao desconhecido, rumo a realização de um sonho meu de criança, eu estava indo para o lugar que devia ir. Não tive dúvidas, abandonei de vez a ideia da pedagogia e me fui aventurar.
            No ano de 1999, com 16 anos, ingressei no Curso de Artes Cênicas, e tudo era muito novo pra mim. Tudo era muito diferente do que eu podia ter imaginado um dia. Tínhamos aula todos os dias, muitos textos, muitos ensaios, muito alongamento, muita informação, e eu correndo atrás de aprender, de assimilar e de entender a revolução que estava por vir, a liberdade que estava se anunciando pra mim.



TEXTO 03- INICIAÇÃO AO CLOWN

            No ano de 2001, quando eu retornava a universidade depois de uma pausa, por conta do nascimento do meu irmão, uma alegria que eu não quis deixar passar, eu comecei o curso de clown. Bem, eu nem sabia o que era o clown, eu nunca tinha ouvido falar. Sabia o que era palhaço, mas também nunca tinha ido num circo. O que aconteceu quando eu soube que teria essa disciplina no curso, foi ser tomada de um entusiasmo gigante, de um brilho e curiosidade, que me fez procurar os livros que estavam na bibliografia, fui ler os textos, fui procurar os objetos que pedia na disciplina e fui me embrenhando, me enrolando com essa figura desconhecida, sem silhueta, sem desenho, sem forma, sem jeito que já estava a caminho.
            O curso de iniciação foi ministrado pela professora Rozane Cardoso (in memorian), foi uma semana intensa, com aulas o dia todo. Uma turma de alunos dentro do Teatro Caixa Preta, na UFSM, experimentando as sensações, emoções e ideias mais malucas que eu podia supor. De uma maneira muito subjetiva e emotiva, a nossa missiê ia nos conduzindo para o caminho no qual ela acreditava que encontraríamos o tão desejado estado do clown. Toda a condução se deu de forma que pudéssemos expor nossos ridículos, expor os nossos “defeitos” físicos e de caráter, para que nesse caminho pudéssemos descobrir algo diferente, fora dos padrões e que provocasse o riso na plateia.
            Eu confesso. Sofri muito nessa semana de trabalho. Me considero uma pessoa muito emotiva, sensível e muito sugestionável também. Acho que começo a passar mal, se alguém disser que estou passando mal. Coisas de palhaça que já me acompanhavam e eu nem sabia. O que é certo é que nessa intensa semana de trabalho, muitas experiências novas foram vivenciadas, muito conhecimento foi adquirido e muitas lágrimas rolaram.
            Quando nos deparamos com nossas limitações, imperfeições, projeções e idealizações, fraquezas, fracassos, frustrações, nos vemos cada vez mais humanos. E hoje eu entendo a necessidade de que se alcance esse estágio no trabalho do palhaço, a necessidade de se chegar nesse lugar de enfrentamento, onde você se olha verdadeiramente, sem máscaras, sem julgamentos e vê claramente quem você é. A iniciação serviu na verdade para tirar a poeira da frente do espelho, então depois eu podia me ver tal como eu era e tinha algumas opções: negar, mudar ou aceitar. Eu resolvi aceitar.
            Resolvi aceitar o tamanho do meu corpo, as minhas curvas avantajadas, a minha inocência ainda existente, o meu medo de pessoas superiores, o meu respeito aos que tem mais conhecimento que eu, a minha admiração por gente boa no que faz, a minha capacidade de criar e de imaginar, resgatada lá dos dias da minha infância, quando eu tinha o poder de ser o que quisesse, quem quisesse, livremente e feliz.

            Claro, não foi fácil. Foi doloroso no início, desfilar a minha barriga enorme e gorda na frente de todos os colegas, homens e mulheres, alguns eu conhecia mais, outros eu via pela primeira vez, gerava constrangimento. Eu nasci chorando. Chorava de vergonha de mostrar parte do corpo tão disforme, tão feia de mim, vergonha de mostrar o meu pior lado, vergonha de ser o que eu era. Mas eu não sabia naquele momento, que enquanto eu chorava de vergonha por mostrar o “pior lado” era justamente ali que eu mostrava o meu lado “mais bonito”, a minha inocência, minha entrega, minha capacidade de me comover com o fato de mostrar a barriga para um bando de desconhecidos. Ali, mostrava minha fragilidade, a possibilidade de mudança, a possibilidade de aprendizado, uma xícara sendo quebrada ou esvaziada, para depois ir enchendo de novo, para depois ser derramada e depois encher de novo e seguir o ciclo sem fim da aquisição do conhecimento.

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